A reforma tributária, que todos esperavam, finalmente se concretizou e já está mudando o panorama fiscal do Brasil. Com a publicação da Emenda Constitucional nº 132/23, em dezembro de 2023, o Brasil começa uma nova fase na tributação sobre bens e serviços, o que terá repercussões significativas para as empresas, para os governos e, sobretudo, para as entidades sem fins lucrativos. Mas, em termos práticos, o que realmente se altera para o Terceiro Setor? Quais riscos e oportunidades emergem nesse novo cenário?
Breve Panorama Geral: A reforma tributária não surgiu do nada! É fruto de intensas discussões e acordos que levaram à promulgação da Emenda Constitucional nº 132/23. Esse novo marco legal eliminou os antigos tributos, como ISS, ICMS, PIS, COFINS e IPI, para instituir novos impostos: o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) e o Imposto Seletivo (IS). Em 2024, o governo federal enviou ao Congresso Nacional dois projetos de lei complementar: o PLP 68/24, que define o IBS e a CBS e se tornou a Lei Complementar nº 214/25, e o PLP 108/24, que aborda o Comitê Gestor e o ITCMD (Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação), que ainda está pendente de votação no Senado. Elas estabelecem alíquotas, métodos de apuração e regimes especiais, obrigando as entidades a uma análise cuidadosa de suas atividades e operações, contratos, relações com parceiros, fornecedores, beneficiários, doadores e outros interessados.
Quais são as alterações nos impostos? A grande inovação da reforma consiste na simplificação do sistema: eliminam-se os múltiplos tributos federais, estaduais e municipais, e são introduzidos dois impostos principais com uma ampla base e apuração não cumulativa. O ISS (2% a 5%) e o ICMS (cerca de 18%) são eliminados para a criação do IBS, cuja alíquota prevista é de 18,7%. PIS e COFINS (3,65% ou 9,25%) dão lugar à CBS, cuja alíquota é de 9,3%. O IPI praticamente acaba, sobrando apenas para certos produtos por meio de Imposto Seletivo.
Na prática, a carga de impostos sobre bens vai continuar a ser a mesma, mas o setor de serviços – que integra o modelo de operação de muitas empresas e entidades do 3º setor, tanto como clientes quanto como prestadoras de serviço (a exemplo do médico) – pode ter maiores custos e discussões quanto ao contrato com terceirizados, já que as novas alíquotas são superiores e não existem mais regimes cumulativos favorecidos.
Imunidades e regimes especiais: o que fica e o que se altera? A Constituição ainda garante imunidade sobre impostos relacionados ao patrimônio, renda e serviços às entidades sem fins lucrativos de educação, assistência social e saúde, protegendo-as, desde que atendam aos requisitos legais. No entanto, a reforma apresentou pontos relevantes:
As receitas de fornecimento de bens ou serviços realizadas por essas entidades estão isentas de tributação pelo IBS, mas as aquisições que elas efetuam continuam a ser tributadas normalmente, sem direito a crédito. Isso pode elevar os custos operacionais, uma vez que o imposto pago nas compras não é recuperável:
- A CBS entende que a imunidade também se estende às receitas, independentemente da obtenção da Certificação de Entidade Beneficente de Assistência Social (CEBAS), mas, em contrapartida, as aquisições continuam sendo tributadas;
- Transações (mesmo que não remuneradas) entre partes relacionadas podem ser passíveis de incidência de IBS e CBS, portanto, é crucial analisar com atenção as relações jurídicas formadas;
- A nova lei complementar estabelece regimes diferenciados que permitem a redução das alíquotas de IBS e CBS em até 60% ou até mesmo 100% para setores como educação formal, saúde, insumos médicos, cultura e esportes.
- As organizações que estão sob o regime de isenção e que, até agora, desfrutavam de um tratamento diferenciado para PIS/COFINS também podem enfrentar consequências, uma vez que as alíquotas reduzidas não foram preservadas no novo texto, resultando em um aumento na carga tributária.
Doações e ITCMD: maior proteção para o Terceiro Setor. Um dos grandes avanços que a reforma trouxe foi a inserção na Constituição da não incidência do ITCMD sobre doações e heranças para entidades sem fins lucrativos de interesse público e relevância social. O PLP 108/24 esclarece que essas organizações são as que promovem direitos fundamentais, bem como políticas sociais e ambientais. Mesmo necessitando de regulamentação, a proposta deve unificar a não incidência do imposto em todo o território nacional, oferecendo mais segurança jurídica e previsibilidade no recebimento de doações.
Como ficam as operações cotidianas? No dia a dia das entidades, algumas operações merecem um olhar mais atento:
- Contribuições de associações: em regra, não incidem IBS e CBS, a menos que as associações realizem algum fornecimento de bens ou serviços para seus membros;
- É preciso ter cautela ao aceitar doações e patrocínios, se houver veiculações de marca que possam ser consideradas contraprestação;
- Se as parcerias se configurarem como prestação de serviços, elas podem ser tributadas, sendo crucial entender a verdadeira natureza da relação, assim como os direitos e deveres de cada parte;
- Fornecimentos internos a preços inferiores ao mercado a partes vinculadas podem gerar a cobrança de impostos.
Transição: de que forma será a adaptação? Não haverá uma mudança instantânea. De 2027 a 2032, os velhos e os novos impostos vão conviver, com alíquotas remanescentes de IPI, PIS/COFINS, ISS e ICMS sendo progressivamente diminuídas, ao passo que o IBS e o CBS crescem proporcionalmente. As entidades deverão estar muito atentas durante essa transição, adequando seus controles contábeis, revisando contratos e investindo em sistemas que garantam o cumprimento adequado das novas obrigações fiscais.
Desafios e oportunidades: de que forma o terceiro setor pode se preparar? A reforma impõe desafios significativos às organizações do terceiro setor:
- O aumento dos custos com insumos, já que as aquisições passam a ser tributadas sem que as imunes tenham direito a crédito, pode demandar um replanejamento financeiro e a busca por novas fontes de financiamento;
- Contratos e parcerias deverão ser adequados para contemplar a mudança de regime e possíveis ajustes de valores;
- A centralização das obrigações acessórias requer investimento em tecnologia e treinamento das equipes;
- É crucial garantir uma documentação consistente e contratos bem elaborados que realmente reflitam as atividades executadas.
- De outro lado, a simplificação do sistema e a segurança jurídica aumentada podem permitir inovações, parcerias e captação de recursos, desde que as entidades se adequem ao novo cenário.
Conclusão: A reforma tributária marca um novo momento para o terceiro setor no Brasil. Apesar da simplificação e segurança jurídica conquistadas, as entidades sem fins lucrativos devem se atentar aos riscos de aumento de custos e à necessidade de se adaptarem. Trata-se de um tempo de planejamento, de atualização e de conversa com especialistas para que a missão social das organizações siga sendo cumprida com sustentabilidade e efeito positivo. Acompanhar a regulação e apostar em governança serão fatores decisivos para navegar essa transição de maneira eficaz.